07 fevereiro, 2015

A Asa Extrema





Mestre Martins Correia



A luz vem de dentro. E estilhaça as vidraças. Um rio contínuo brota, desmembrando o vento, o tempo e a razão. E as cerejas despenham-se na intolerável flor dos fulcros instáveis. Algo revolve a vida. Alguém que não sou eu, grita e passa, desdobra a penumbra inquieta, a amonite impregnada e recolhe o ouriço fossilizado na ânsia de viver. Numa ruína antiga, um verso, uma canção, disparam o silêncio, o lacre sereno, a papoila radiosa, a tinta corrosiva, a matéria solar, entre uma estrela, um rubi, um corcel de sangue, um topázio doce, um gazal de flores, uma sombra, uma quimera inútil, uma teriaga que o tempo tornou antiga.
Alguém. Um sopro, um corpo, um nenúfar a boiar num poço fundo, uma hera que trepa, um pássaro derramado que transforma o verde, o ardor, a flor do mundo. Alguém, no espaço etéreo, dispara, fere e estilhaça, entre um rasto, um som, um detrito.
Algo que sou e que não sou abre a porta ao corpo, à vertigem, à inquietação da asa extrema. Alguém planta a treva, a crisálida minúscula no Outono das cinzas. O vento aconchega a fúria, a dor, a mancha informe. Há que escrever a cal, a água, o solo nocturno, o ávido pensamento. As buganvílias acompanham os meus passos, a lua negra, a sombra abundante. No tropel sedento, sou resina e fulgor de uma terra incendiada, eco de uma onda abafada que sobrevive na áspera cintilação dos brancos mármores.
Quem sou, senão uma biografia de pedras e de nuvens, um xarope de rosas, mel, um barco de amarras cortadas a flutuar no cais e na salsugem? Quem sou, senão um rosto de marfim, uma máscara de febre, uma vela roxa, um lírio, um tempo insone, tecendo o ouro perdido a flutuar num esqueleto de mar e de palavras?
Quem sou, senão a Primavera lenta que fermenta nas horas, nos dias?Alguém revolve as volutas, as circunvoluções de névoa, os centros vitais. E as guitarras pulsam no gelo, escrevendo as suas epopeias melodiosas de cordas, conchas e enigmas.
Como deter este caudal que coroa o mar, as dunas, o anil, os pulsos cortados na agonia de ser fruto, flor, crisálida adiada, semente de chuva, bala de chumbo, redil de sombras, perfil salgado sempre por nascer?

Maria do Sameiro Barroso