23 fevereiro, 2015

IV - VÍTOR GIL CARDEIRA .POEMAS PARA UMA TEIA








Executar o silêncio

Há sempre palavras que não expressam
Os dias finais, rompendo o tempo, errando
No lajedo das memórias, palavras
Imóveis na narrativa infinita do devir.

Abarcar as cicatrizes, escaldando
a carne, nomear as dúvidas
 e abandonar os afetos, nomear
os objetos que cumprem e preenchem
o vazio da multidão, reduz a rede seminal
a um labirinto oculto na consciência dos elementos.

Há palavras nunca ditas, criadas para
Executar o silêncio na nudez na pedra,
Espetro da linguagem nunca lavrada pelo fogo,
Consumindo as margens do sulco de Abel
Fecundado pelo sangue que o corpo liberta,
Inocentando Caim. Só palavras consumindo
A morte, absolvendo o assassino que emerge
Da natureza apologética, reescrevendo os
Pergaminhos do medo. Se a conversa aproximar
Os contadores de lendas, só restarão fragmentos
De palavras, ninguém recitará os tabus enquanto
Os procedimentos fatais da loucura se erguerem
No pano de fundo do teatro da vida.

Os assassinos vagueiam nos bastidores envolventes,
 Sussurram onomatopeias complexas, confirmando tudo
O que foi dito nas planícies intemporais. A ausência
Reflete-se na sinuosidade do texto esotérico,
Saudando a imortalidade do desejo. A eternidade
Não extingue as palavras que devoram a carne e
Recriam o espírito. O tempo não esconde a
Insolvência que perturba o futuro, o futuro
Mediador implacável entre sobreviventes
E assassinos, na contenda final.

MGordo  18/10/2011




ninguém mais baterá na tua porta
sangrando na noite os profetas
declamando falsas memórias
semeando hortênsias nos caminhos
que percorrem as margens
da solidão
ninguém mais baterá à tua porta
sussurrando palavras leves
como os cabelos cruzando
a tempestade
ninguém mais saberá onde
moras




O negócio das esplanadas


Algumas vezes os milagres acontecem
Nas esplanadas do café e não chegam a horas
Para acordar quem precisa de repousar
Nos esconsos armário da felicidade.

Há pessoas que tomam pílulas para dormir
Quando descobrem que a vigília é um estado
Terminal que visa perpetuar as conversas ambulantes,
As serpentes que perseguem as caras que emergem das noites.
Pesadelos ambiciosos no sono inútil, cancro que se instala
Nas ideias que fumegam nas chávenas de café.

O café é forte e o empregado atende as velhas
Com malandrice concupiscente. Ali, só a morte
Impõe o cumprimento da vida. Se não morrêssemos,
Ninguém largaria uma conversa a meio, ninguém
Se levantaria da esplanada fria sem se despedir
Para sempre. Todos fumávamos e ríamos e troçávamos
Da inflação, não haveria subsídio de férias, nem paraísos fiscais,
Nem mesmo bancos na Suíça. As férias seriam eternas
E a sobrevivência estava assegurada pela imortalidade.
Não haveria ambivalência nos escritórios onde
Se negoceiam as dívidas soberanas e as agências
De rating não fariam poemas atirando dados.

Nas esplanadas continuar-se-ia a tomar café,
Talvez aguardente de medronho da serra, as velhas
Seriam mais velhas, pois a morte nunca chegaria,
E os coveiros frequentariam workshops, fazendo
up grade dos ossos que manipulavam,
E passariam a exercer carreiras de sucesso
No mundo da alta finança.

No crescente e rentável negócio das esplanadas,
O tráfico de influências daria lugar a happenings
De solidariedade social, performances plásticas
Sem redundância nenhuma, sorteios de ganâncias
Desprovidas de valor ou meetings de pontos de vista dejá vus.
O vil metal chegaria de mercedes-benz, e de carro funerário,
E no coche barroco do falecido do João 5º.
Falecido??!! O que é isso?, perguntariam as crianças
Post mortem. No passado as pessoas morriam,
Ausentavam-se para sempre, explicaria um transeunte
Manhoso, erguendo, respeitosamente, os olhos ao céu.

Há cadáveres famosos que nos enformam os desejos.
Teimam, mesmo defuntos – descansados sejam -, em alienar-nos
O pensamento, em gritar fazendo estremecer as pedras
Tumulares. Se não morrêssemos, o futuro não seria o vazio
Que tentamos escravizar, o mundo que não conseguimos
Desocultar quando avançamos na escuridão.

Na esplanada os pássaros depenicam partículas
Recebidas por correio eletrónico, provocam os adultos
Com peidos monumentais e sorriem às crianças
Que os escolhem para amigos desinteressados.

Se não morrêssemos os cientistas deixariam
De tentar explicar as coisas e tentariam interpretar o nada,
O nada e a sombra que anuncia o fim sem fim. Nem é fácil
Imaginar o poder dos mecanismos que regem os mercados,
Nem fácil colocar bombas nas instalações dos bancos de investimento.
O grito fascista que ecoou na Ibéria profunda encontra
Seguidores nos caminhos irregulares dos desvalidos.
Viva la muerte, será o regresso às origens onde o vento
Açoita a tarde.

Nas esplanadas voltar-se-ão a ouvir os lamentos
Das vozes que reverberam as parangonas dos jornais.




Cozinha nublada

Deu-me uma branca e esqueci o meu nome. A mania
que imaginara enquanto enfiava a roupagem
do lobo mau, fez-me detestar as cócegas que os filmes
de polícias e ladrões me presentearam.
Na ginástica, ninguém saltava mais alto que eu, dizia catapultando
o corpo por cima dos automóveis engarrafados.
Deu-se-me uma branca e o queijo que roía, distraído, não
me sabia a nada.
Olá!, atirou-me o anúncio da pepsodent. Gosto
 de gajas e a mulher do sorriso branco desafia-me
os instintos que adquiri na selva. Foram baratos
e, por isso, voavam sobre rios e precipícios. Às vezes
era preciso ser campeão de natação para aceitar os convites
da vizinha antes do anoitecer. Mal transpunha a porta
via a loira pepsodent e esquecia-me da vizinha boazona
que me outorgara o convite. Começada a brincadeira
 com a outorgante; que não tinha olhos azuis, nem cabelos loiros,
nem sorriso uniformizado; ficávamos tão felizes que os corpos nus
pareciam saídos de um documentário sobre lontras no pacífico sul,
ou de uma telenovela mexicana em tempos de crise.
Grandes tempos aqueles! O que dava pena era ver o marido
 e o papagaio a brincar às gaiolinhas enquanto esperavam o jantar.

Queres ir ao circo?, perguntou-me ainda o papagaio antes
da minha saída pela escada de incêndios.
Não, obrigado, e… boa noite senhor doutor.
Pareceu-me entristado o cumprimentado anfitrião e vizinho
dedicado: o trabalho de doutor devia ser um bocado chato,
concluí, puxando o fecho éclair até acima.
na cozinha nublada.

Deu-me uma branca e nem sequer a minha identidade reconheço.
Aliás o que vira na televisão era uma mancha branca
Por entre os lábios da confusão.

MGordo 19/5/2011




Não creio em silêncios

Não creio em silêncios
crus, em conversas iluminadas
calcando a brutalidade dos
parágrafos cadastrados.
Não creio nas palavras grávidas
atiradas aos pesadelos
dos interlocutores,
não posso convidar quem parte
a loiça de minha casa
e amola lâminas
no fundo da consciência
solúvel, na poeira dos
caminhos.

Aceito o desafio das cordas
envoltas em arame farpado,
golpeando as sombras, as
fímbrias dos edifícios
castrados, a limpidez
dos corpos omissos fedendo
a cadáver exibido nas
cerimónias panegíricas

latindo na agonia dos
políticos imberbes
e escorregadios
que as noites abreviam
no sôfrego espetáculo
das multidões corruptas,
envenenando o cemitério
das idiossincrasias
incandescentes.

Não creio nos sonhos
Que se erguem da noite
Perpétua.


M. Gordo 5/12/13